28 de dez. de 2009

Risco sobre a superfície dura (Getulio Cardozo)

Desnudo, sem artifícios intelectuais, segurando uma vela, é assim que pretendo me aproximar dos alfarrábios do Washington José de Moraes. Quase impossível livrar-nos dos vícios de análise, de certa arrogância intelectual que adquirimos com o passar do tempo. Não posso também esconder-me na sombra de um discurso impessoal, tendo em vista nossa convivência desde a infância.

Falo de toda essa preparação para viagem porque não é um caminho fácil chegar até a caverna deste místico esclarecido, desse arqueólogo dos idiomas, desse marxista com os pés na Idade Média. Ele é o nosso Bukowski, Lima Barreto ainda nas brumas. Mas um Bukowski místico, vivendo entre a boemia e a contemplação do sagrado. Para completar o seu perfil talvez seja necessário lembrar São João da Cruz (o maior místico e poeta de língua espanhola).

Washington é daqueles poetas que se inscreve à margem da poesia brasileira, sem filiação a escola, pobre, alcoólatra, autodidata, vidente, maior e muito à frente de seu meio. O que sabe, o que busca, o que escreve, não tem valor de mercado. As suas visões místicas não se enquadram no cânone de qualquer religião. Sempre foi e sempre será um herege para a religião, para a sociedade, para a família. É um melancólico porque nada da modernidade o seduz.

Seus escritos são apontamentos do seu tempo de travessia no reino desse mundo, que prefiro chamar de sistema e que Kafka descreveu como o inferno. Mas é com sarcasmo que interpreta os papéis que lhe sobram nesse teatro, preferindo o picadeiro ao púlpito. É o profeta desse crepúsculo da modernidade que ri pelo caminho.

Como o autor de Une Saison em Enfer, Washington teve a experiência da vidência, que ele atribui ao Espírito Santo. Ele me relatou esse fato, que nunca duvidei. Portanto, a miopia positivista e as luzes do esclarecimento não dão conta de explicar sua obra. E seria besteira procurar um lugar para os seus alfarrábios em alguma vertente literária. Somente faço essas considerações porque sou seu amigo de muitos anos na travessia dos vários círculos do inferno (hoje sabemos que essa travessia é necessária).

Apesar do seu vasto conhecimento, inclusive lingüístico, a narrativa do Washington vem daquela linha de sombra do sistema, daquela franja onde estão os esquecidos. É uma obra interrompida várias vezes, devido suas internações em hospícios, morando ora num lugar ora noutro. É até um milagre que se salvou parte de seus escritos, que eu e o Maicon encontramos numa velha caixa de papelão na edícula onde vive.

Como poeta, Washington nunca pretendeu exibir carteirinha de vanguarda ou foi ambicioso em querer inovar em termos de escola. Entretanto, a força expressiva dos seus poemas o coloca à frente, inovando sem a intenção de erguer essa bandeira. Ele criou uma peça teatral que não foi escrita, mas que ficou em sua memória, esse sim é um trabalho de vanguarda (usando esse termo entre aspas). Nos seus contos constatamos o mesmo fato daquele que tem como única opção rir, mas o riso que soa como profecia, denúncia, risco sobre a superfície dura.

A minha militância* e a do Washington confluem para uma mesma postura diante do mundo: o anti-Iluminismo, o sebastianismo, o desejo de restaurar uma ordem perdida. É um traço fascista assinalando duas pessoas de esquerda? Imagino que não, pois é comum numa esquerda messiânica o desejo de restaurar uma ordem desfeita, vendo as mudanças provocadas pelo capitalismo como o fim dos tempos. Pode ser também o desconforto dentro do sistema. Nesse caso a palavra passa a possuir algo de prodígio e restaurador. No caso do Washington a palavra transcende à função de mediadora entre sujeito/objeto, pois ela esconde um algo mais, de modo especial, o ideograma japonês (seu terreno preferido de pesquisas). O ideograma para ele é onde o mundo se realiza plenamente, é a chave enterrada pelo tempo. Uma outra tradução: a palavra é a alma (recuso o termo subjetividade), a identidade profunda que o narrador teme ser profanada, o círculo do inferno que falta ultrapassar.

Nutrindo-se sempre das sobras da cultura clássica, compondo as migalhas dessa cultura à nossa maneira de autodidatas, acabamos por transformá-las em mito, moldá-la ao nosso messianismo provinciano, fundindo teoria marxista com exegese bíblica, modernidade e cultura caipira. E esse seja talvez o traço mais interessante de nossa obra: essa mistura de viola caipira e harpa grega, um peculiar sebastianismo erudito, cujos protagonistas trilham pela esquerda, mas se recusam a entregar a coroa ao rei, que pelejam por algo mais que a justiça social, pois lá na frente está o fogo ou espírito, sempre lá na frente. Nisso vai nossa recusa da versão sem mercado do capitalismo, pois nossa peleja é pelo reino glorioso do sebastianismo, promessa de tempos de antanho. O comunismo é bem vindo, mas que se instaure o reino glorioso cantado em verso e prosa. É desta forma que o Washington emerge da epopéia escrita nas noites dos hospícios, no banco da rodoviária, ouvindo a chuva na edícula onde mora.

* no sentido existencial, mas com conotações políticas.

(texto de Getulio Cardozo)

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